Uma das modalidades de cessação do contrato de trabalho é a resolução pelo trabalhador [artigo 340º, al. g), do Código do Trabalho – doravante, CT]. Dispõe o n.º 1 do artigo 394.º do CT que o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato, ocorrendo justa causa, enunciando os n.ºs 2 e 3 da referida disposição legal exemplos de comportamentos que configuram justa causa.
A justa causa para a resolução do contrato por iniciativa do trabalhador pressupõe, em geral, que da atuação imputada ao empregador resultem efeitos de tal modo graves, em si e nas suas consequências, que se torne inexigível ao trabalhador a continuação da prestação da sua atividade.
Na ponderação da inexigibilidade da manutenção da relação de trabalho deve tomar-se em consideração o grau de lesão dos interesses do trabalhador, o caráter das relações entre as partes e as demais circunstâncias relevantes respeitando a diferença entre o despedimento disciplinar e a resolução do contrato por iniciativa do trabalhador.
Atentemos numa situação específica. Uma trabalhadora que exercia as funções de copeira num restaurante, que se traduziam em servir bebidas e preparar doces, saladas e entradas servidos aos clientes, por ter recusado a proposta da empregadora de cessação do contrato de trabalho sem pagamento de qualquer indemnização, é confrontada com uma ordem de limpeza das casas de banho e, face à recusa de limpeza das mesmas, começa a ser insultada por uma das gerentes da empregadora. De seguida, é confrontada com uma alteração unilateral do horário de trabalho, sem qualquer consulta prévia e quando o horário estava individualmente acordado no contrato de trabalho.
O tribunal da Relação de Évora, no seu acórdão datado de 13-10-2022 (disponível em www.dgsi.pt) foi confrontado com a questão de saber se procedeu com justa causa à resolução do contrato de trabalho, a trabalhadora que foi confrontada com a situação supra descrita.
Para o efeito, socorreu-se da posição que a jurisprudência vem reiterando, nos termos da qual a justa causa subjetiva para a resolução do contrato pelo trabalhador, exige a verificação dos seguintes requisitos:
- um requisito objetivo, traduzido num comportamento do empregador violador dos direitos ou garantias do trabalhador;
- um requisito subjetivo, consistente na atribuição de culpa ao empregador;
- um requisito causal, no sentido de que esse comportamento, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
Ora, no caso vertente, entendeu o tribunal que o primeiro requisito se encontra preenchido, na medida em que, não só a alteração das funções profissionais da trabalhadora surge como uma punição aplicada sem precedência do respetivo procedimento disciplinar e por se ter recusado a aceitar a cessação do contrato de trabalho sem pagamento de qualquer indemnização, como as palavras dirigidas à trabalhadora são ofensivas da honra e consideração que lhe eram devidas, ademais proferidas num contexto de menorização profissional e de menosprezo pela sua nacionalidade. Logo aqui se deteta a violação pela empregadora do dever de respeito e de tratamento urbano da trabalhadora, imposto pelo art. 127.º n.º 1 al. a) do CT.
Agravando a situação de desrespeito à trabalhadora, seguiu-se a unilateral alteração do seu horário de trabalho, imposta pela empregadora sem precedência de qualquer consulta à mesma, como exigido pelo art. 217.º n.º 2 do CT, ainda para mais numa situação em que o horário estava individualmente acordado no contrato de trabalho, motivo pelo qual não podia ser unilateralmente modificado, exigindo o devido acordo da trabalhadora – n.º 4 do aludido art. 217.º. Mais uma vez, a alteração do horário de trabalho, para além de ilícita, surge como uma forma de punição da trabalhadora, aplicada sem o devido procedimento e por esta pretender preservar os seus direitos legais.
Quanto ao segundo requisito – comportamento culposo do empregador – a doutrina afirma que “a culpa do empregador presume-se, nos termos gerais da responsabilidade contratual, por aplicação do art. 799.º do Código Civil. Cabe à entidade empregadora afastar a presunção, alegando e provando os elementos factuais suficientes para habilitar o tribunal a formular um juízo de não-censurabilidade da sua conduta.”
No caso, entendeu o Tribunal que nada permitia concluir pelo afastamento de tal presunção, tanto mais que a conduta da empregadora mostra-se claramente censurável, por reveladora da intenção de punir a trabalhadora por esta pretender preservar as garantias legais e convencionais do seu contrato de trabalho.
Relativamente ao terceiro requisito – a gravidade e consequências do comportamento da empregadora tornaram imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho – Maria do Rosário Palma Ramalho ensina que não pode apreciar-se este requisito “em moldes tão estritos e exigentes como no caso de justa causa disciplinar”, porquanto, o trabalhador não dispõe de meios alternativos de reação que lhe permitam conservar a relação laboral, ao contrário do empregador que dispõe de um leque de sanções disciplinares conservatórias.
No caso em apreço, concluiu o Tribunal que a situação profissional da trabalhadora não se podia sustentar num contexto como o descrito nos autos, em que a empregadora aplicava punições de forma encapotada e ainda a insultava. Deste modo, manter o contrato de trabalho naqueles circunstâncias representaria para a trabalhadora não só o rebaixamento das garantias legais e convencionais do seu contrato, mas acima de tudo implicaria a aceitação de graves injúrias. E tal continha o risco da situação se agravar ainda mais, por a aceitação da trabalhadora constituir uma espécie de sinal à empregadora que tudo lhe era permitido.
Em virtude da verificação cumulativa dos três pressupostos mencionados, decidiu o Tribunal da Relação de Évora que a trabalhadora procedeu à resolução do contrato de trabalho com justa causa.
Dra. Delfina Rita Mendes
Dra. Helena Alves de Sousa