Nos termos da lei, “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”. Mas, e se concorrer para a ocorrência do acidente a inobservância das regras de segurança pelo trabalhador? Ora, esta é uma análise que deve ser realizada casuisticamente, contudo, em termos gerais, atente no que se expõe infra.

A lei que regula o acidente de trabalho – a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro –, prevê a possibilidade de descaraterização do acidente de trabalho. Assim, o artigo 14.º prevê situações em que o empregador não se encontra obrigado a reparar os danos decorrentes do acidente ocorrido. Assim sendo, cabe, em face da inobservância das regras de segurança pelo trabalhador, analisar caso a caso, se se verifica alguma daquelas situações, a fim de se poder responder à questão colocada.

Aplicando-se o pensamento na prática, o Tribunal da Relação de Évora, no seu acórdão de 9.06.2022, processo n.º 70/18.5T8STC.E1, debruça-se sobre uma situação em que, sucintamente, um trabalhador entrou numa área de acesso restrito, no seu local de trabalho, e para a qual não tinha cartão de acesso, em cumprimento de uma ordem de trabalho por um superior hierárquico no sentido de o acompanhar àquele local. Sucedeu que, ao descer um lanço de escadas, o seu pé esquerdo ficou preso entre o último degrau e o chão, o que provocou o seu desequilíbrio e a consequente queda.

A questão trazida a discussão pela entidade patronal reside em saber se, nestes termos, se pode considerar haver uma descaraterização do acidente, de modo a que aquela não seja responsável pela reparação dos danos, pelo facto de o trabalhador se ter dirigido àquela área mesmo sabendo que, por motivos de segurança, não tinha autorização para ali aceder.

Posto isto, há que averiguar da eventual da aplicação do disposto ou na alínea a) ou na alínea b) do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, já que apenas uma destas se poder verificar in hoc casu.

Vejamos:

A descaraterização do acidente prevista na alínea a) do nº1 do artigo 14º da Lei nº 98/2009, exige a verificação cumulativa de 3 requisitos:

– existência de regras de segurança desrespeitadas por parte do destinatário/trabalhador;

– atuação voluntária/ consciente do destinatário/trabalhador, embora não intencional, por ação ou omissão e sem causa justificativa;

– nexo de causalidade entre a conduta voluntária e o acidente

Sendo certo que, nos termos gerais, o ónus probatório da situação excludente do direito à reparação do acidente recai sobre quem a invoca, ou seja, sobre a entidade empregadora.

Aplicando ao caso concreto, a verdade é que não obstante o trabalhador ter acedido àquela área sem possuir o cartão de acesso, cuja posse era condição necessária para aceder, de acordo com as regras de segurança estabelecidas, o mesmo atuou em cumprimento de ordens de trabalho que lhe foram determinadas por pessoa a quem devia obediência, designadamente o seu superior hierárquico. Desta feita, a inobservância das regras de segurança tem uma causa justificativa.

Ademais, o tribunal afirma ainda que “não ficou demonstrada a existência de uma relação de causalidade entre a inobservância, pelo sinistrado, de uma regra de segurança e a ocorrência do acidente”. Assim, exclui-se a verificação da situação prevista pela alínea a) do artigo 14.º da supra mencionada lei.

Prosseguindo, prevê a alínea b) do artigo 14.º do identificado diploma legislativo que o empregador também não será responsável pela reparação dos danos se o acidente provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.

Antes de mais, a aplicação desta alínea implica a existência de um nexo de causalidade adequado e exclusiva entre o comportamento caracterizável como negligência grosseira, assumido pelo sinistrado, e o evento lesivo.

Em segundo lugar, é o próprio legislador quem define o que se considera negligência grosseira, no n.º 3 daquele artigo 14.º, pese embora recorra ao uso de conceitos indeterminados que devem ser preenchidos casuisticamente: “comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão”. Veja-se, quanto a esta questão, o que afirma Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais- Regime Jurídico, 2.ª edição, pág. 187: “”Comportamento temerário” e “alto e relevante grau” são conceitos vagos que dificilmente se podem analisar, a não ser ponderando situações concretas, com pessoas concretas e em locais concretos. Significa isto que entendemos que tais conceitos não devem ser “medidos” face ao comportamento ideal do “bónus pater familiae”. Por outro lado, o uso indiscriminado do conceito temerário pode punir atos de abnegação e heroísmo, normalmente caracterizados pela sua temeridade, e não premiá-los como seria de justiça.”

Em suma, a negligência grosseira manifestar-se-á num comportamento temerário em alto e elevado grau. Contudo já não serão qualificadas desta forma as situações em que “esse comportamento temerário deriva da «habitualidade ao perigo do trabalho executado», “da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”, elementos que delimitam por sua vez negativamente aquela forma de negligência, tornando-a não censurável”, e, assim, nestas situações, não haverá descaraterização do acidente, continuando o empregador obrigado na reparação dos danos. De denotar que a apreciação da negligência grosseira deve ser realizada, sempre, tendo em consideração as específicas e concretas condições do sinistrado e nunca em função de um padrão geral ou abstrato de conduta.

Ora, aplicando ao caso concreto, o trabalhador entrou na área restrita em cumprimento de uma ordem de trabalho que lhe foi transmitida pelo seu superior hierárquico, pelo que o acesso lhe foi concedido por quem controla o acesso àquela área. No mais, sempre há a referir que aquela não foi a única vez que o trabalhador acedeu à área restrita sem possuir cartão de acesso, o que é suscetível de criar alguma “banalização” ou “habitualidade” da situação.

Assim, o Tribunal conclui, quanto ao caso concreto, que “do exposto não resulta que qualquer conduta assumida pelo autor se possa considerar temerária e, muito menos, em elevado grau esta questão da seguinte forma”, afirmando que “não é possível afirmar que o acidente proveio exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”, pelo que não há lugar à descaraterização do acidente.

 

Dra.  Delfina Rita Mendes

Dra. Marta S. Neto