O crime de abuso de confiança fiscal encontra-se atualmente previsto no artigo 105º do Regime Geral das Infrações Tributárias (doravante, RGIT). Comete o crime do nº1 do artigo 105º do RGIT quem não cumprir o dever a que está legalmente obrigado de entregar à Administração Tributária, no todo ou em parte, uma prestação tributária de valor superior a 7.500 €, deduzida nos termos da lei. A distinção entre a previsão do n.º 1 e a do n.º 2 é de particular relevância: enquanto o n.º 1 se refere às situações em que há “dedução”, o n.º 2 diz respeito aos casos em que o sujeito da relação tributária, obrigado à apresentação da declaração, “recebe” a importância que deve declarar e entregar à Administração Tributária, nos termos regulados pelo regime jurídico do imposto em causa.
Com efeito, a incriminação não se limita ao n.º 1 do artigo 105.º do RGIT. No que se refere ao IVA, não pode falar-se em “prestação tributária deduzida nos termos da lei”, como exige este preceito e sucede, designadamente, no IRS. O regime do IVA refere-se à “dedução”, com sentido diverso, isto é, relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber e não ao imposto que tem a pagar.
No caso do IVA, o que se exige do ponto de vista do preenchimento do tipo objetivo de ilícito é que o sujeito passivo tenha recebido as importâncias faturadas a título de IVA, tenha procedido à operação de liquidação (apuramento) e à entrega das respetivas declarações, mas tenha omitido a entrega da prestação tributária a que estava obrigado no prazo fixado, desde que seja de valor superior a € 7.500.
O abuso de confiança fiscal trata-se, deste modo, de uma infração tributária consumada através da retenção de quantias patrimoniais que deveriam ser entregues ao Estado por conta dos deveres de cooperação de um sujeito tributário. É a infidelidade a razão da punição.
Uma nota que importa aqui deixar registada é que, o artigo 105º RGIT não se refere ao elemento “apropriação”, reconduzindo-se a infração em apreço numa omissão pura e num crime de mera inatividade.
Do ponto de vista subjetivo, o abuso de confiança fiscal constitui um crime doloso, ou seja, só há responsabilidade penal na presença de um comportamento voluntariamente desconforme com o ilícito típico.
Resulta do n.º 4 da supramencionada norma legal que o legislador apenas considera criminalmente responsável o contribuinte que, para além do decurso do prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, tiver feito a entrega à administração tributária da declaração de imposto devida, embora falte ao seu pagamento no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito. Tal como refere Germano Marques da Silva, os prazos da alíneas a) e b) devem ser conjugados, sendo que o prazo de 30 dias da alínea b) pode ocorrer antes do prazo de 90 dias da alínea a) nos casos evidentemente de estarmos perante um caso de comunicação da prestação tributária à administração tributária. Ou seja, por ficção legal, o legislador determinou que a presente infração só se consuma no momento em que o agente devia proceder à entrega da prestação (no último dia do prazo).
Do ponto de vista dogmático, não há consenso na doutrina sobre a natureza dos supramencionados limites quantitativos de punibilidade: estes podem ser estruturados como elementos constitutivos do crime ou como condições objetivas de punibilidade. Enquanto elementos do crime, a superação dos limites há-de ser abrangida pelo dolo do agente, o que não é exigível, segundo alguns autores, se se tratar de condição objetiva de punibilidade. A ratio destes limites de punibilidade é limitar a intervenção penal só aos factos ilícitos financeiramente mais significativos.
Também não existe consenso quanto à questão de saber qual o bem jurídico protegido pela incriminação em análise, entendendo alguns autores que se trata do património fiscal do Estado, isto é, do conjunto das receitas fiscais de que o Estado é titular, e outros que o bem jurídico protegido não se resume ao património do Estado, visa muito mais, em geral, a salvaguarda da atividade financeira do Estado, condição do Estado Social e Democrático de Direito, que é o nosso.
Dra. Marisa Simões
Dra. Helena Alves de Sousa