No âmbito do processo penal português vigora o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal (doravante, CPP), nos termos do qual o valor que o juiz atribui às provas não está, em regra, pré-estabelecido, sendo estas apreciadas segundo as regras da experiência comum e de acordo com a livre convicção daquele, uma livre convicção que não pode ser arbitrária ou subjetiva e, por isso, deve ser motivada, de modo a que a generalidade das pessoas consigam compreender o sentido da decisão.
Todavia, o aludido princípio não é absoluto, existindo casos em que a lei impõe ao juiz penal, face à verificação de determinadas premissas, a extração de conclusões pré-fixadas. É o que sucede quanto à prova pericial. A perícia é a atividade de perceção ou apreciação dos factos efetuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
A cultura geral do julgador não abrange (nem tem de abranger) todas as áreas de conhecimento e a lei permite recorrer a peritos que tenham conhecimentos especiais nestas áreas, pelo que é natural que a lei tenha determinado que “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador” (art. 163º, n.º 1 do CPP). Assim sendo, vale o que o perito disser no seu relatório pericial.
A perícia médica não se confunde com a perícia sobre a personalidade, cujo objetivo é verificar “a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da sua credibilidade” (art. 131º, n.º 2 do CPP).
O único limite absoluto para a capacidade natural de testemunhar é o da incapacidade mental para depor sobre os factos que constituem objeto da prova. Muitas vezes depõem nos tribunais, com inteira validade, pessoas com deficiências mentais e menores de tenra idade (alguns, vítimas). Em todos os casos, deve a autoridade judiciária (art. 131º, n.º 1, al. b do CPP) verificar sempre a aptidão física e mental de qualquer depoente para prestar depoimento, recebê-lo e avaliar a sua congruência. Tal verificação pode ser feita empiricamente, ou em caso de dúvida, com recurso a perícia sobre a personalidade (154º e 159º).
Situação especial é a de depoentes menores de 18 anos, sendo vítimas também menores de 18 anos quando o seu depoimento incidir sobre crimes de natureza sexual, onde a perícia sobre a personalidade pode ter lugar se a autoridade judiciária (juiz ou Ministério Público durante o inquérito) assim o decidir (160º).
Esta perícia psicológica tem um campo de atuação muito limitado contrariamente ao que se passa com as vulgares perícias. Muito claramente não se destina a apurar ou a certificar se as declarações são verdadeiras. Por duas razões: a cientificidade muito limitada e instável da psicologia não lhe permite afiançar se quem quer que seja fala verdade; a tarefa de apreciar a veracidade de declarações e depoimentos é exclusivamente judicial. Por isso que a função desta perícia psicológica se limita a afirmar se o declarante tem ou não uma personalidade efabuladora, que desaconselhe o seu depoimento.
Logo, há aqui dois vetores que não podem ser confundidos: capacidade física e mental (credibilidade, por ausência de efabulação) da testemunha para prestar depoimento; e a credibilidade (enquanto “aceitabilidade probatória”, no cotejo com as restantes provas) das suas declarações em sede de regras de apreciação probatória. A primeira, tarefa do psicólogo, a segunda dos magistrados.
À luz do exposto, concluímos que a perícia sobre a personalidade se submete ao princípio da livre apreciação da prova, já que não se trata de uma perícia médica. Neste sentido dispõem, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13-09-2022, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-06-2008, e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 23-10-2008, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Dra. Delfina Rita Mendes
Dra. Helena Alves de Sousa