Dispõe o artigo 496.º, n.º 2 do Código Civil (doravante, CC) que, no caso de um facto ilícito ter provocado a morte de uma pessoa distribuem-se por três grupos as pessoas com direito a indemnização: o cônjuge e os descendentes; na falta deles, os pais ou outros ascendentes; por fim, os irmãos ou sobrinhos com direito de representação.
No que interessa à titularidade do direito à compensação existe uma profunda cisão na doutrina, que tem, precisamente, por objeto a interpretação da referida norma. Discute-se se o elenco é ou não taxativo: se só os familiares indicados poderão peticionar uma indemnização ou se também terão legitimidade outras pessoas.
Assim, alguma doutrina afirma que a titularidade do direito de compensação pertence apenas às pessoas elencadas no art. 496º nº 2. De entre os autores que defendem que a enumeração é taxativa e, portanto, insuscetível de aplicação analógica, destacam-se Sinde Monteiro, Menezes Leitão e Abrantes Geraldes, que entendem que pode naturalmente suceder que a morte da vítima cause ainda danos não patrimoniais a outras pessoas, não contempladas na graduação que faz o nº 2, tal como pode acontecer que esses danos afetem as pessoas abrangidas na disposição legal por uma forma diferente da ordem de precedências que o legislador estabeleceu. Mas este é um dos aspetos em que as excelências da equidade tiveram de ser sacrificadas às incontestáveis vantagens do direito estrito.
De entre os autores que defendem a não taxatividade do art. 496º nº 2 destaca-se Menezes Cordeiro que, referindo-se ao mencionado preceito, afirma: “Não faz já muito sentido, para mais numa época em que a família perde terreno, quer na sociedade, quer na própria lei.”. Esta tese é também perfilhada por Mafalda Miranda Barbosa que considera que “sempre que esteja em causa um sujeito que esteja unido pelos laços do amor com o falecido, não obstante não seja seu familiar ou não o seja no grau mais próximo, então dever-se-á operar uma extensão teleológica da norma”.
Atentemos numa situação concreta: na sequência de um acidente de viação que causou a morte de uma pessoa, veio a cônjuge do falecido, em representação dos seus três filhos – dois deles filhos biológicos do falecido e um apenas filho dela, mas que viveu com o falecido desde os dois anos de idade – peticionar uma indemnização por danos não patrimoniais contra a seguradora daquele que culposamente, causou o acidente. A ré seguradora aceitou que a responsabilidade pela produção do acidente que causou a morte do sinistrado se deveu, em exclusivo, à conduta do seu segurado, tendo o referido evento resultado do seu comportamento infrator, mas contestou, sustentando a não titularidade do direito pelo enteado.
O Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre esta situação, no seu acórdão de 15-09-2022 (disponível em www.dgsi.pt), tendo considerado que “o n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil deve ser interpretado como permitindo que seja equiparado a filho o enteado que viveu com a vítima desde os 2 anos de idade e com quem se relacionava como se de um pai se tratasse, não se justificando a manutenção da ignorância das novas formulas de vivência familiar dos tempos modernos, ainda que o enteado não tenha sido adotado ou apadrinhado pelo falecido”.
Para assim concluir lançou mão dos seguintes argumentos:
- O modelo de família tradicional existente à data de entrada em vigor do CC não é hoje o dominante. Na sociedade moderna, além da tradicional família biológica, existem vários tipos de famílias, como as famílias adotivas, as famílias recompostas, que surgem do desmembramento de outras famílias; existem os padrastos e as madrastas e os meios-irmãos. Por isso, o elenco de familiares referidos no art. 496º nº 2 encontra-se ultrapassado. Assim sendo, é de admitir a possibilidade de indemnização de tais danos nos casos em que os companheiros da mãe, ou do pai, ou os tios, estão ligados ao menor sinistrado de maneira a constituírem os “pais” dele, verificando-se proximidade e comunhão afetiva em tudo semelhantes à da filiação;
- Reconhecimento legal das novas famílias por via dos regimes de proteção da união de facto, com consagração legal, e alteração normativa do art.º 496.º, no sentido de abarcar essa mesma realidade no domínio da proteção ressarcitória;
- Criação de regimes específicos de inserção de crianças em família, como seja o apadrinhamento civil;
- Reconhecimento social da necessidade de tutela de situações não especificamente enquadráveis numa leitura estrita do art.º 496.º do CC e com aplicação já efetivada na ordem jurídica portuguesa, seja pela via da jurisprudência, seja pela via extrajudicial da composição de litígios, reportando-nos, quanto a esta última situação, aos casos de indemnização pela morte das vítimas dos incêndios de Pedrógão (de 2017).
À luz do exposto, concluiu o Tribunal que tendo o menor em causa vivido com o falecido desde os dois anos de idade e, nesta vivência, comungado de todas as experiências que um filho experimenta em relação ao pai, não há razão que obste à possibilidade de invocar em juízo o prejuízo moral que a morte do padrasto lhe causou.
Dra. Delfina Rita Mendes
Dra. Helena Alves de Sousa