A Lei n.º 69/2014, de 29 de Agosto, introduziu dois novos tipos legais no Código Penal: o crime de maus-tratos a animais de companhia (artigo 387.º) e o crime de abandono de animais de companhia (artigo 388.º do Código Penal).

A criminalização dos maus-tratos e abandono de animais de companhia tem motivado acesa polémica, no que diz respeito ao bem jurídico protegido nos artigos 387.º e 388.º do Código Penal. Com efeito, tanto a jurisprudência como a doutrina vêm reconhecendo a dificuldade de compatibilizar o crime de maus tratos a animais de companhia com a ordem constitucional, assumindo que o bem jurídico tutelado neste crime não se oferece como evidente, havendo mesmo alguns autores que pugnam pela inexistência de bem jurídico.

Nos termos previstos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Assim, os bens jurídicos que se visam proteger com a incriminação deverão estar, implícita ou explicitamente, consagrados na nossa Lei Fundamental, sendo que a tutela penal, de “ultima ratio”, se deve revelar necessária e proporcional à proteção de tais bens jurídicos.

Nesta medida, a questão que essencialmente se coloca em torno da criminalização dos maus tratos a animais de companhia é a da determinação do bem jurídico subjacente à proteção concedida pela norma penal.

Na sequência de recurso interposto de decisão da 1ª instância que condenou um arguido, em autoria material, sob a forma consumada, pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. no artigo 387.º n.º 3 do Código Penal, foi o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão datado de 26-10-2022 (disponível em www.dgsi.pt) chamado a pronunciar-se acerca da inconstitucionalidade daquela norma incriminadora, alegando o recorrente que a mesma não tem um bem jurídico subjacente.

Entendeu o Tribunal que a primeira constatação a reter é a de que o bem jurídico não tem que ser necessariamente encabeçado por um sujeito de direito. Não obstante os animais não poderem ser considerados sujeitos de direitos por não disporem de personalidade jurídica, nem por isso deixam de merecer a tutela do direito.

De seguida, salientou a posição assumida por António Jorge Martins Torres, de acordo com a qual “no caso do crime de maus tratos a animais de companhia, a tutela do bem-estar do animal representa não um fim, mas um meio ou instrumento de proteção mediata de outros bens jurídicos fundamentais, como por exemplo, o da própria dignidade humana, o da justiça e da solidariedade, todos eles previstos no artigo 1.º da nossa Constituição”, bem como a tese propugnada por Teresa Quintela de Brito, que sustenta que o bem jurídico protegido pelo tipo é um  “bem colectivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais directos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação actual (passada e/ou potencial) que com eles mantém. Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas superiores capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afectados pelas suas decisões e acções”.

Assim, em conclusão, acompanhou o Tribunal de recurso o pensamento dos referidos autores, sustentando a constitucionalidade do tipo legal de crime em discussão, por entender estar identificado o bem jurídico tutelado pela norma, centrado nos deveres que sobre o comum dos cidadãos recaem, e não diretamente na vida, integridade física ou bem-estar dos animais de companhia.

 

Dra. Delfina Rita Mendes

Dra. Helena Alves de Sousa