Foi proferido no dia 3 de novembro de 2021, pelo Supremo Tribunal de Justiça, um acórdão que veio uniformizar jurisprudência no sentido de que a venda, em processo executivo, de imóvel arrendado para fim não habitacional, quando o contrato de arrendamento tenha sido celebrado depois da constituição de hipoteca sobre esse imóvel, não faz caducar o arrendamento, como decorre do art. 1057.º do Código Civil (doravante, CC), não sendo aplicável o art. 824.º, n.º 2, do CC.

No caso vertente, estava em causa a venda executiva de um imóvel sobre o qual incidia uma hipoteca constituída em 2002 e a questão nuclear colocada ao Tribunal era a de saber se o contrato de arrendamento para comércio celebrado sobre o mesmo imóvel, em 2006, ou seja, depois de o imóvel ter sido hipotecado, mas antes de ter sido penhorado, deve caducar com a venda judicial, por aplicação do art. 824.º, nº 2 do CC ou se, ao invés, a venda executiva não afeta a subsistência do contrato de arrendamento, por força do disposto no art. 1057.º do mesmo diploma legal.

Ora, preceitua o artigo 824.º, nº 2 do CC que “os bens são transmitidos livres de direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.”

Por sua vez, prescreve o art. 1057.º do CC que “o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo”.

Entendeu o Tribunal que a venda, em processo executivo, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do arrendatário de harmonia com o preceituado no art. 1057.º do CC, sendo inaplicável o disposto no nº 2 do artigo 824.º, porquanto, não existem argumentos de natureza literal e sistemática que permitam incluir o arrendamento no âmbito deste normativo.

Literalmente, o arrendamento não se encontra previsto no art.  824.º, nº 2 do CC, entre os direitos que não se transmitem com a venda executiva. Por tal razão, ao longo de algumas décadas, doutrina e jurisprudência dividiram-se quanto à questão de saber se a intenção do legislador foi a de incluir o arrendamento nessa previsão normativa, quando se refere a direitos reais, ou se deveria entender-se que existe uma lacuna legal, e que, ainda que se entenda que o direito do arrendatário não é um direito real, sempre a aplicação do art. 824º, nº 2 seria defensável por uma razão de equiparação teleológica com a solução prevista para os direitos reais (de gozo).

Da perspetiva da interpretação sistemática, não se pode afirmar que a não inclusão expressa do arrendamento no art. 824º, nº 2 do CC constitua uma lacuna legal, pois o art. 1057º deste Código soluciona a questão, ao determinar que a transmissão do direito com base no qual o arrendamento foi celebrado tem como consequência a sucessão na posição do locador, sem estabelecer qualquer restrição quanto ao modo, voluntário ou forçado, de transmissão do direito. Trata-se de normas que, tendo sido consagradas, em simultâneo, pelo mesmo legislador, no Código Civil de 1966, não sofreram qualquer alteração até ao presente. O legislador estabeleceu, assim, claramente, para o direito do locatário uma norma especial (a locação não caduca com a venda), que constitui um desvio temporal (correspondente à duração do contrato de locação) ao princípio da prevalência dos direitos reais. E deve notar-se que o art. 1057º é uma norma imperativa, que não admite, por isso, convenção em contrário.

Do ponto de vista do alcance teleológico da interpretação do art. 824º, nº 2, caso se verificasse a caducidade do contrato de arrendamento, por aplicação do referido preceito legal, o arrendatário teria a obrigação de imediatamente restituir o imóvel, como decorreria dos artigos 1038º, alínea i) e 1081º, nº 1 do CC. Acresce que, não se encontrando esta hipótese de caducidade prevista no art. 1051º, não lhe seria aplicável a moratória prevista no art. 1053º do CC. A obrigação de restituir o imóvel seria, portanto, imediatamente exigível. Não sendo tal obrigação cumprida, e existindo interpelação para a restituição, o ex-arrendatário tornar-se-ia responsável pelo pagamento de uma indemnização correspondente ao dobro da renda que pagava, como determina o art. 1045º, nº 2. 

À luz do exposto, concluiu o tribunal que a severidade desta solução, tratando-se de local onde se encontra instalado um estabelecimento comercial (com dezenas de trabalhadores, como no caso concreto) seria teleologicamente incompreensível no quadro de uma legislação locatícia integrada por múltiplas normas de natureza imperativa, tuteladoras da estabilidade do gozo do local arrendado e da previsibilidade da duração do contrato.

Dra. Delfina Rita Mendes

Dra. Helena Alves de Sousa