Segundo a decisão do dia 25 de maio de 2022, do Tribunal da Relação de Lisboa com o processo 18905/19.5T8.LSB.L1-4 e para efeitos de aplicação do preceituado no art.º 14.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, retira-se que não age com negligência grosseira e exclusiva o sinistrado/trabalhador que salta para a linha de caminho de ferro para apanhar o telemóvel de valor elevado, e que lhe tinha sido oferecido pela sua companheira, que aí havia caído e vem a ser mortalmente colhido por um comboio que circulava no local quando o sinistrado se encontrava a tentar saltar para a plataforma, na medida em que e tendo em consideração as circunstâncias do caso em apreço que o mesmo só saltou com o objetivo de recuperar o telemóvel, antes que viesse a ser destruído com a passagem de um comboio e desconhecia a periodicidade e o horário desse comboio, bem como se o mesmo circulava de acordo com a velocidade legalmente permitida para o local ou, efetivamente, em excesso de velocidade, confirmando-se a sentença do tribunal de primeira instância.
Na verdade, as questões que relevam a devida apreciação do tribunal consistem em saber se não se verifica a existência de um acidente de trabalho em virtude de o percurso utilizado pelo trabalhador ter sofrido um desvio e, ocorrendo acidente de trabalho, que o mesmo seja descaracterizado por se verificar negligência grosseira exclusiva do sinistrado (trabalhador).
Considera-se acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte segundo o disposto no número 1 do artigo 8.º da Lei 98/2009 de 4 de setembro e, relativamente a esta matéria, a Ré (Seguradora) reconhece e expressamente aceita que se sucedeu um acidente de trabalho na deslocação do trabalho para casa, no trajeto normalmente utilizado e no período habitualmente gasto (art.º 9.º, n.ºs 1, alínea a) e nº 2, alínea b), tendo notoriamente, e face ao disposto tal ter ocorrido no percurso do trabalhador. Ainda neste ponto, e mediante o articulado na alínea 3 do artigo 9º da Lei referida supra, não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorra quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito. Pergunta-se, nesta senda, se o telemóvel constitui atualmente um objeto de uso indispensável para a generalidade das pessoas? É sobretudo por via do telemóvel que as pessoas estabelecem e mantêm contactos telefónicos e trocam as mais diversas informações. Aí se armazenam também vários dados, sendo no telemóvel que se guardam os contactos de familiares e amigos, fotos, mensagens, notas e demais aspetos relevantes da vida de cada um. Sendo de tal modo fundamental por estar presente na vida dos cidadãos que se configura como “uma extensão da própria pessoa”.
Outro objeto de análise destaca a descaracterização do acidente de trabalho quando se confirme a existência de negligência grosseira conforme o descrito do artigo 14.º número 1, alínea b), afirmando que não há lugar a reparação dos danos decorrentes do acidente quando tais derivem exclusivamente da referida negligência. Ora, entende-se por negligencia grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão, traduzindo-se tais palavras num comportamento grave e censurável, embora injustificável.
A grande problemática surge por conta do que a Ré alega, uma vez que pretende declinar a sua responsabilidade infortunística por argumentar que o acidente se mostra descaracterizado, devido a negligência grosseira do sinistrado. Contudo não se deve deixar de contabilizar os danos emergentes dos acidentes de trabalho que o trabalhador e os seus familiares têm, sendo responsável por essa reparação e demais encargos decorrentes de acidente, a entidade que tiver trabalhadores ao seu serviço, ou a entidade legalmente autorizada a realizar seguro (seguradora), para quem tiver sido transferida a referida responsabilidade.
Como refere Júlio Gomes (Juíz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça) só em casos excecionais é que a responsabilidade do empregador se coloca em causa, devendo ser excluída nas situações de inobservância do dever objetivo de cuidado que era exigível. A descaracterização do acidente deve restringir-se a situações muito graves do ponto de vista do juízo de censura do sinistrado sob pena de a pessoa que trabalha e que, como pessoa comete erros, com maior ou menor frequência, ficar sem proteção por um erro momentâneo.
Denote-se que o sinistrado aquando do seu ato demonstrou certa, e fatal, imprudência pelos factos que se foram aqui expondo. Contudo, conclui-se que não se pode afirmar que estamos na presença de uma situação sem qualquer justificação e incompreensível à luz das regras da vida e da experiência em comum não se evidenciando o “instituto” da negligencia grosseira.
Dra. Delfina Rita Mendes
Dr. Gonçalo Castanheira dos Santos