O Código do Trabalho prevê uma noção de retribuição, segundo o qual “considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho”, sendo certo que a retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie. Ademais, nos termos daquela lei, presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador.
Ora, quer isto dizer que, a noção legal de retribuição engloba aqueles valores (pecuniários ou não) que o empregador se encontra obrigado a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em contrapartida da atividade por ele desempenhada, presumindo-se constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador, presunção que se ilide mediante prova em contrário. Deste modo, abrange-se a retribuição base e todas as prestações que tenham caráter regular e periódico, feitas direta ou indiretamente, em dinheiro ou espécie, quer seja por força da lei, quer por imposição de instrumento de regulamentação coletiva ou, ainda, decorrente de prática da empresa.
Posto isto, tenhamos em mente uma situação concreta: Um trabalhador a quem foi atribuído um veículo da empresa, para utilização diária, que o mesmo utiliza para situações profissionais e pessoais, com o conhecimento e consentimento do empregador, sendo o empregador quem suporta todos os custos relacionados com a viatura. Será que, a qualquer momento, pode o empregador retirar o veículo ao trabalhador?
A nossa lei não esclarece qual o significado das expressões “regular” e “periódica”, contudo sempre poderemos dizer que a regularidade e a periodicidade sempre dependerá da prestação específica.
A jurisprudência foi tentando concretizar este conceito indeterminado, divergindo na sua interpretação, de acordo com o caso concreto. O Acórdão de 1 de Outubro de 2015, do STJ, com o valor do proferido em julgamento ampliado da revista, em processo civil, que fixou a interpretação da cláusula 12.ª do Regulamento de Remunerações, Reformas e Garantias Sociais, integrado no AE entre a TAP — Air Portugal, S. A. e o SNPVA, para chegar a essa interpretação acabou por “estabelecer um critério orientador que permita aferir o que é e o que não é regular e periódico”, em concreto: “considerar-se regular e periódica e, consequentemente, passível de integrar o conceito de retribuição, para os efeitos em causa, a atribuição patrimonial cujo pagamento ocorre todos os meses de atividade do ano”. Neste sentido, e à luz deste critério, que vem sendo seguido pela jurisprudência, considera-se regular e periódica uma prestação pecuniária que seja paga ao trabalhador pelo menos 11 meses no período de um ano de trabalho.
Aqui chegados, a verdade é que, na prática, existem bastantes prestações complementares, ao vencimento base, que tanto são regulares e periódicas (ex: prémios trimestrais), como não têm qualquer periodicidade (ex: prémios por serem atingidos determinados resultados pela empresa). Ademais, por efeito da lei ou de instrumento de regulação coletiva de trabalho, são devidas outras prestações pecuniárias de diversa natureza e periodicidade, além da retribuição base.
Pese embora não seja uma regra, essas prestações complementares, as mais das vezes, estão, direta ou indiretamente, ligadas às particularidades da prestação de trabalho – é o que sucede com, a título de exemplo, o subsídio noturno, subsídio para deslocações. Nestes casos, o pagamento destas prestações depende da prestação efetiva de trabalho, sendo que apenas integrarão o conceito de retribuição se forem recebidas com uma regularidade e periodicidade tal que criem no trabalhador uma legítima expectativa quanto ao seu recebimento.
Veja-se o que afirma Monteiro Fernandes, que, pronunciando-se sobre a especifica função desempenhada pelo critério legal de retribuição, conclui que o mesmo “(..) constitui, assim, o instrumento de despiste dos valores que, no seu conjunto, têm um nexo de correspectividade com a posição obrigacional do trabalhador, encarada também na sua globalidade. Ele serve, então, para definir a posteriori uma base de cálculo para certos valores derivados”. O mesmo autor afirma ainda que: “O «ciclo vital» de cada elemento da retribuição depende do seu próprio regime jurídico, cuja interpretação há-se pautar-se pela específica razão de ser ou função desse elemento na fisiologia da relação de trabalho”.
Assim, “em suma, não basta o mero recebimento regular e periódico de uma prestação para lhe atribuir a natureza de retribuição, por força da presunção estabelecida na lei, […] impondo-se, concomitantemente, num trabalho de interpretação sobre a sua fonte legal ou convencional, indagar sobre a razão de ser da sua atribuição”, conforme afirma o Tribunal da Relação do Porto no seu acórdão de 08/06/2022.
Por outro lado, a lei laboral prevê o princípio da irredutibilidade da retribuição, segundo o qual “é proibido ao empregador diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos neste Código ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho”. Todavia, a irredutibilidade da retribuição não significa, necessária e diretamente, que não possam diminuir-se, ou mesmo extinguir-se, determinadas prestações retributivas complementares, já que há que aferir se estas se consideram, ou não, retribuição.
Neste sentido, o Tribunal da Relação do Porto, no seu acórdão de 08/06/2022, afirma que ficam “afastadas as parcelas correspondentes a maior esforço ou penosidade do trabalho, a situações de desempenho específicas, como é o caso, a título de mero exemplo, da isenção de horário de trabalho, ou a maior trabalho, como ocorre com a prestação de trabalho além do período normal de trabalho (vulgo, trabalho suplementar), ou quando se tratam dos referidos prémios ou incentivos”. Isto porque, é permitido ao empregador suprimir aquelas prestações quando cesse a situação específica que esteve na base da sua atribuição.
Voltando ao nosso exemplo e aplicando-lhe tudo o supra discorrido, foram já vários os casos em que os nossos tribunais se pronunciaram quanto à questão de saber se a atribuição de veículo automóvel, atendendo às circunstâncias concretas de cada caso, integra a retribuição do trabalhador ou é um mero instrumento de trabalho e a sua utilização pessoal apenas decorre de tolerância do empregador.
No nosso exemplo, que corresponde à situação abordada no acórdão de 08/06/2022 do Tribunal da Relação do Porto, resulta dos factos que, “a atribuição da viatura para utilização diária para uso profissional e pessoal, fazia parte das condições remuneratórias que vigoravam na empresa para a contratação dos técnicos comerciais/analista de crédito, sendo nesse contexto que foi atribuída viatura ao autor, gerando neste a convicção de que tal era um complemento atribuído pelo seu trabalho e como tal constituía parte do seu salário, tendo esse factor sido essencial para que aceitasse celebrar o contrato de trabalho”. Sendo certo que, a atribuição do veículo ao trabalhador durou 25 anos, ao longo dos quais lhe foram sucessivamente atribuídos vários veículos. Mais, por essa razão, ao longo desses anos nunca necessitou de um veículo automóvel a título particular, já que o trabalhador fazia uso diário daquele veículo, para utilização profissional e pessoal, com o conhecimento e consentimento do empregador, sendo este último quem suportava todos os custos inerentes ao veículo.
Na análise desta situação o tribunal de recurso entendeu que “a atribuição da viatura ao autor consubstancia uma prestação em espécie, regular e periódica que se traduz numa substancial vantagem económica, logo, com natureza retributiva, consequentemente integrando a sua retribuição e estando a entidade empregadora vinculada, com carácter de obrigatoriedade a assegurar-lhe essa prestação em contrapartida da prestação de trabalho. Beneficiando, por isso, da garantia da irredutibilidade da retribuição, não podia a Ré ter determinado a entrega do veículo, como o fez”.
Dra. Delfina Rita Mendes
Dra. Marta S. Neto