Nos termos da nossa lei, “o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso” (negrito nosso). Porém, de acordo com o disposto no número 3 do artigo 498.º do Código Civil: “Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável” (negrito nosso). Ora, deste modo, pese embora o prazo regra para o exercício do direito de indemnização, ante os nossos tribunais, se resuma a 3 anos, a verdade é que, tendo em conta a abertura daquela exceção, este prazo pode ser alargado se o facto que serve de base ao direito de indemnização constituir um crime previsto e punido pela nossa lei penal e para o qual a lei estabeleça uma prescrição mais longa do que aqueles 3 anos – nesse caso, será esse o prazo prescricional a ter em conta para o exercício do direito de indemnização através de ação judicial cível.
Quais os contornos da aplicação prática desta exceção?
O Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão datado de 06/01/2022, pronunciou-se sobre este alargamento de prazo ao abordar um caso concreto. Neste acórdão estávamos perante uma situação em que a Autora intentou uma ação contra a Ré Seguradora peticionando o pagamento de indemnizações por danos patrimoniais (danos corporais e prejuízos) e não patrimoniais de que foi alvo, em consequência de acidente de viação de que foi vítima, ocorrido no dia 16/11/2011, na Amadora, e que foi da responsabilidade da condutora do veículo, cuja responsabilidade civil se encontrava, como legalmente imposto, transferida para a Ré Seguradora. Ademais, importa para a presente análise mencionar que, o referido sinistro deu origem a um processo-crime no qual a condutora do veículo foi constituída arguida e acusada, em autoria material, na forma consumada, de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, perpetrados contra a Autora e a sua mãe. No âmbito deste processo-crime, a condutora do veículo foi condenada pela prática dos dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, conforme vinha acusada – sendo certo que, esta sentença transitou em julgado em 29/09/2016.
Posteriormente, a ação cível, que deu lugar ao recurso sub judice, foi proposta em 10/03/2020, sendo a Ré Seguradora citada em 27/05/2020. Em saneador-sentença, o Tribunal de 1.ª Instância julgou procedente a exceção peremptória de prescrição, absolvendo a Ré Seguradora dos pedidos contra si formulados. Contudo, a Autora apresentou recurso de apelação deste saneador-sentença.
Por Decisão Singular, foi decidido “julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogar a sentença recorrida na parte em que julgou verificada a excepção de prescrição e absolveu a Ré dos pedidos conta si formulados, substituindo-a por esta decisão que julga improcedente a referida excepção de prescrição e determina o normal prosseguimento do processo”. Não conformada com esta decisão veio a Ré reclamar para a Conferência, nos termos da 2.ª parte do número 3 do artigo 652.º do Código de Processo Civil.
Ora, no âmbito daquela Reclamação, o Tribunal de Recurso considerou que ao caso sub judice é aplicável o prazo alargado de cinco anos, ao invés do prazo regra de 3 anos previsto na lei civil. Isto porque, o facto ilícito gerador de responsabilidade civil (e que, consequentemente, cria na esfera jurídica da autora um direito de indemnização), constitui crime de ofensa à integridade física por negligência. Ora, conforme previsto na alínea c) do número 1 do artigo 118.º do Código Penal, a prescrição do respetivo procedimento penal está sujeita ao prazo de 5 anos.
Deste modo, na situação concreta, a Autora contava com um prazo de prescrição de 5 anos para propor a competente ação cível. Na prática, o Tribunal de Recurso afirmou que “tendo a acusação sido notificada à Autora em 25/01/2016, estava a mesma habilitada a exercer o seu direito à indemnização até 25/01/2021, sendo que só então o mesmo se extinguiria, por decurso do referido prazo prescricional”. Daqui se retira que o prazo de prescrição não começa a correr enquanto não findar o procedimento criminal iniciado, relativo ao crime de ofensas à integridade física por negligência.
Na sua Reclamação, a Ré Seguradora defendia que “o cômputo do prazo de prescrição se iniciou na data do sinistro [16/11/2011] e que, por isso, o respectivo prazo de 5 anos já havia decorrido aquando da sua citação, em 27/05/2020, ou seja, que o suposto direito da Reclamada já estava prescrito desde 16/11/2016”, argumentando que “o período de tempo durante o qual esteve pendente o processo-crime não releva para o cômputo do prazo de prescrição, isto é, não interrompe a sua contagem, atento o princípio geral da adesão obrigatória da acção cível à acção penal expresso no artigo 72.º do Cód. Proc. Penal”, acabando por concluir que a Decisão Singular em crise está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/10/2012.
Contudo, o Tribunal de Recurso considerou que não assiste razão à Ré Seguradora, não considerando existir qualquer contradição entre a Decisão Singular e a orientação doutrinária e jurisprudencial seguida pelo STJ, que será a maioritária.
Neste sentido, o Tribunal de Recurso afirmou que “a aplicação do alargamento do prazo prescricional a que se refere o n.º 3 do artigo 498.º do Cód. Civil, não está dependente de, previamente, ter corrido processo crime, e muito menos da existência de condenação penal, assim como não impede a acção cível, o facto de o processo crime ter sido arquivado, ou amnistiado” (negrito nosso).
A aplicação do prazo alargado, conforme previsto no número 3 do artigo 498.º do Código Civil, está meramente condicionada à possibilidade da subsunção dos factos base da ação cível, à previsão da norma penal. Assim, o lesado sempre pode intentar a ação cível desde que alegue e prove, no âmbito desta, que a conduta do lesante constitui, no caso concreto, determinado crime – este é o pressuposto essencial e necessário para o alargamento do prazo de prescrição.
Ademais, a Autora não estava obrigada, por força do princípio da adesão obrigatória da ação cível à ação penal, porquanto estão em causa dois crimes semipúblicos, cujo procedimento criminal teve início através de queixa apresentada pela Autora junto do Ministério Público e das autoridades policiais competentes. Aliás, veja-se o afirmado pelo STJ, no seu acórdão de 22/01/2004: “Tendo sido instaurado processo crime contra o lesante pela alegada prática de um crime semi-público (ofensas corporais por negligência) mediante a apresentação oportuna da competente queixa por parte do lesado, torna-se patente que o lesado manifestou, ainda que de forma indirecta, a sua intenção de exercer o direito a ser indemnizado pelos danos que lhe foram causados pelo arguido/lesante”.
Ora, apesar de consagrado aquele princípio, no direito processual penal, o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei. Com efeito, a alínea c) do artigo 72.º do Código de Processo Penal admite a reclamação de indemnização cível, decorrente do facto criminoso, fora do processo penal, quando “o procedimento depender de queixa ou de acusação particular”.
Ademais, note-se que, conforme afirma o Tribunal de Recurso, a apresentação de queixa pela Autora interrompe o prazo prescricional previsto (tanto o previsto no n.º 1 como o previsto no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil). Sendo certo que, o prazo interrompido, reinicia-se com o despacho de acusação ou de arquivamento, no caso de haver lugar a processo-crime.
Posto isto, o Tribunal de Recurso conclui, afirmando que o direito de indemnização da Autora não se encontrava prescrito quando proposta a ação, em 10/03/2022. E tal conclusão será de retirar quer se perfilhe o entendimento maioritário da jurisprudência – segundo o qual “o inicio do cômputo do prazo de prescrição – no caso de 5 (cinco) anos – se dá com o encerramento do inquérito-crime, que ocorre com a definitividade (“trânsito em julgado”) do despacho de arquivamento ou de acusação ou de pronúncia/não pronúncia, após a sua notificação ao arguido e/ou ofendido/assistente, por aplicação do critério definido no art.º 306º, nº 1 do Cód. Civil” –, quer se considere um entendimento minoritário – “como a Autora parece defender, que o início do computo do prazo prescricional, até aí interrompido, se dá com o trânsito em julgado da decisão final proferida no processo-crime, designadamente com a definitividade da sentença condenatória, [caso em que] só se extinguiria em 29/09/2021 (29/09/2016 + 5 anos)”.
Dra. Delfina Rita Mendes
Dra. Marta S. Neto