Os acidentes de trabalho, assim como as doenças profissionais, são regidos, principalmente (mas não só), pela Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, vulgarmente denominada “LAT”.  Ora, o número 1 do artigo 8.º da LAT prevê o conceito de acidente de trabalho para efeitos da presente lei e, assim, define-o como: “aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.

Assim, daqui retiramos que a qualificação de um acidente como acidente de trabalho implica a verificação cumulativa de 3 elementos, a saber:

  1. O local de trabalho;
  2. O tempo de trabalho; e
  3. O nexo causal entre o evento e a lesão.

Aqui chegados, e de modo simplista, necessitamos de saber o que se considera local de trabalho, tempo de trabalho e como se avalia a existência de nexo causal entre o evento e a lesão. Ora, a LAT prevê também esta definição, auxiliando-nos na compreensão de cada um destes conceitos.

Neste seguimento, entende-se por local de trabalhotodo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador” (conforme previsto na alínea a) do número 2 do artigo 8.º da LAT), sendo certo que no caso de teletrabalho ou trabalho à distância, considera-se local de trabalho aquele que conste do acordo de teletrabalho. Já quanto ao tempo de trabalho, além do período normal de trabalho, a LAT prevê (na alínea b) do número 2 do seu artigo 8.º), que se considera aquele “que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho”.

No que concerne ao nexo causal entre o evento e a lesão, este já é um conceito não tão pacífico dada a sua não previsão ou definição na LAT. Assim, atualmente, a teoria subjacente ao regime legal de reparação dos acidentes de trabalho é a teoria do risco económico ou risco da autoridade, segundo a qual, o regime legal de reparação dos acidentes de trabalho assenta na ideia de um risco genérico ligado à noção ampla de autoridade patronal e às diferenças de poder económico entre as partes.

Como afirma Carlos Alegre, in “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais – Regime Jurídico Anotado”, Almedina, 2ª edição, 2000, pág. 46: “O critério de distinção só pode ser exatamente este: os atos da vida profissional distinguem-se dos atos da vida corrente, desde que decorram diretamente da execução da missão. Por isso mesmo, afigura-se-nos pouco rigoroso e suscetível de, em geral, inultrapassáveis confusões falar-se de nexo de causalidade entre o acidente e o trabalho do sinistrado, devendo, antes, averiguar-se da existência ou não do vínculo de autoridade da entidade patronal, a qual, obviamente, só se exerce sobre os atos da vida profissional e não sobre os da vida corrente”. Em suma, é imperioso que o trabalhador, aquando do acidente, se encontre no âmbito de atos decorrente da prestação de trabalho (ou seja, se encontre sujeito à autoridade do empregador), e não na realização de meros atos particulares.

Atentemos numa situação específica. Um trabalhador, motorista de pesados, circulava ao serviço da sua entidade empregadora a fim de proceder ao transporte de mercadorias. Todavia, devido à longa distância que havia de ser percorrida, o trabalhador não teria possibilidade de regressar a sua casa para o descanso diário. Assim, perfazendo o trabalhador o limite máximo legal de tempo que poderia conduzir seguido, viu-se impedido de exercer a condução, face ao número de horas que já havia conduzido. Neste seguimento, parou para repouso legalmente imposto. Ora, sucede que, o trabalhador, quando se encontrava a pernoitar dentro do camião que conduzia, acordou e abriu a porta do camião para necessidades fisiológicas, sendo que, ao descer o camião, desequilibrou-se e caiu, sofrendo lesões corporais.

A questão que se levanta é: será que um acidente nestes termos é considerado um acidente de trabalho à luz do descrito previamente?

O Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se em relação a esta situação, no seu acórdão de 08/06/2022 (disponível em www.dgsi.pt), tendo considerado que se tratava de um acidente de trabalho. Vejamos, sucintamente, a sua fundamentação.

O Tribunal considerou que, apesar de o conceito de acidente de trabalho ser delimitado pelos 3 elementos supra mencionados (espacial, temporal e causal), a verdade é que, ainda assim, pode dizer-se que acidente de trabalho não é apenas o que rigorosamente ocorre “no local e tempo de trabalho”, pois a própria LAT prevê situações que equipara a “tempo e lugar de trabalho”, desde logo as “interrupções normais ou forçosas de trabalho” e as “deslocações de ida e regresso do trabalho”” (negrito nosso).

Assim, daqui decorre que o facto de o trabalhador estar a descansar (da jornada de trabalho, estando legalmente impedido de exercer a condução, em face do número de horas que já conduzira), e o acidente ocorrer numa interrupção do sono, não afasta, por si só, a caraterização do mesmo como acidente de trabalho. Aliás, o Tribunal refere mesmo que “não é porque a noção de «repouso» constante do Regulamento (CE) nº 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, […] referir que o período de repouso é o período durante o qual o motorista pode dispor livremente do seu tempo (não estando, por exemplo, sem exercer a condução mas a aguardar a carga ou descarga do veículo), que impede que se considere para efeitos de reparação do acidente que foi no “tempo de trabalho””.

Neste seguimento, depreende o Tribunal da Relação do Porto que, não se exige que o acidente ocorra na execução do trabalho ou por causa dessa execução, bastando que ocorra por ocasião dela, estando pressuposto nessas circunstâncias que o trabalhador se encontra direta ou indiretamente sujeito ao controlo do empregador” (negrito nosso), e, assim sendo, importa, no caso concreto verificar se, na altura que o trabalhador sofreu o acidente, tinha ou não recuperado a sua “independência em relação à missão profissional”. Ora, continua o Tribunal afirmando que, para podermos aferir de tal independência, não podemos perder de vista que na situação específica se trata de um motorista de pesados – trabalhador que, por esse motivo, está sujeito a condicionalismos de tempo de condução (nomeadamente, pausas e períodos de repouso), legalmente impostos.

Tudo analisado, o Tribunal conclui que “o Autor se encontrava a pernoitar naquele local (fora da sua residência) em virtude do seu trabalho (de motorista que esgotou o tempo diário legal de condução, podendo assim dizer-se estar em descanso naquele local por imposição legal, nomeadamente por questões de segurança), quando estava a executar aquilo que a sua empregadora lhe determinara, sendo a pernoita no camião pelo menos consentida pela empregadora. [e, como tal] podemos dizer que o Autor estava naquele momento sujeito, ainda que indiretamente, ao controlo/direção da empregadora”.

Posto isto, decidiu o Tribunal da Relação do Porto que “atentas as circunstâncias específicas da situação, é de dizer que a pernoita na cabine do camião decorre diretamente da execução da missão/função profissional, não se tratando da vida corrente do trabalhador”, e, pelo tanto, o acidente sofrido carateriza-se como acidente de trabalho.

 

Dra. Delfina Rita Mendes

Dra. Marta S. Neto