No pretérito dia 10 de março de 2022, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu um acórdão, no âmbito do processo n.º 15187/19.0T8LSB.L1-2, abordando várias questões relacionadas com o condomínio e a assembleia de condóminos.
O processo iniciou-se com uma ação declarativa de condenação proposta por um grupo de condóminos contra outro grupo de condóminos (todos pertencentes ao mesmo condomínio), na qual se pedia que fossem anuladas deliberações de Assembleia de Condóminos. Ora, tendo sido citados, os Réus deduziram a exceção da ilegitimidade passiva, alegando, sucintamente, que os mesmos seriam parte ilegítima na ação, não devendo ser a ação proposta contra si. Ademais, impugnaram a ação, alegando, em síntese, que as deliberações são legais, concluindo pelo pedido pela improcedência da ação e a condenação dos Autores com litigantes de má-fé.
Apreciada a exceção da ilegitimidade passiva dos Réus, foi a mesma julgada procedente e, consequentemente, absolvidos os Réus da instância. Tendo sido requerida pelos Autores, posteriormente, foi admitida a intervenção principal provocada do Condomínio. Enquanto parte na ação, o Condomínio, tendo sido citado, contestou, alegando a legalidade das deliberações da Assembleia de Condóminos ora em crise.
Sucede que, realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença julgando a ação improcedente e absolvendo o Réu Condomínio do pedido, julgando, ainda, prejudicada a apreciação do pedido de condenação dos Autores como litigantes de má-fé. Na sequência do conhecimento do presente caso, o Tribunal de recurso apreciou diversas questões. Não obstante, na presente análise, iremos somente olhar atentamente para duas, nomeadamente, as seguintes:
- O aproveitamento da contestação apresentada pelos primitivos Réus, pelo Réu condomínio será possível?;
- Apreciação da intervenção de advogado nos autos ora em análise.
- O aproveitamento da contestação apresentada pelos primitivos Réus, pelo Réu condomínio
Ao analisar os autos, o Relator percebeu que a audiência de julgamento da 1.ª instância terá incidido, para além de outras, sobre matéria admitida por acordo como se de matéria controvertida de tratasse, o que configurou um “vício processual que terá inquinada a sentença e as alegações da apelação contra ela interposta e que deverá ser conhecido e corrigido por esta Relação”. Tendo sido concedida às partes, previamente, a possibilidade de exercerem o seu direito de contraditório quanto a esta questão, o Tribunal pronunciou-se sobre a mesma na sentença de recurso.
Sucede que, como referido supra, a ação foi inicialmente proposta contra um grupo de condóminos. Ora, tendo sido citado, posteriormente, por via de intervenção principal provocada, o Condomínio passou a ser o único Réu na ação. No âmbito da sua intervenção, enquanto Réu, este contestou a ação, concluindo pelo pedido de legalidade das deliberações impugnadas, porém, em momento algum, impugnou a ação, não impugnando, deste modo, os factos articulados na petição inicial (nem, tampouco, tendo declarado que fazia sua a contestação antes apresentada pelos Réus excluídos da ação por absolvição da instância) – porventura, acreditando que, a contestação oferecida pelos primitivos Réus lhe aproveitaria. Neste seguimento, o Tribunal de 1.ª Instância procedeu à realização da audiência de discussão e julgamento, tendo, no final, proferido sentença, na qual elencou a matéria de facto que considerava provada e a que considerava não provada – não atendendo à não impugnação dos factos pelo Réu Condomínio. Assim, parece que a sentença terá considerado que a contestação dos Réus primitivos aproveitava ao Réu Condomínio, o que não é processualmente aceitável.
Posto isto, o Tribunal de recurso decidiu, quanto a esta questão, que “O aproveitamento oficioso dessa contestação pelo tribunal recorrido configura-se como manifesto erro de julgamento em sede de matéria de facto, o qual não poderá deixar de ser corrigido por esta Relação, nos termos do disposto na al. d), do n.º 1, do art.º 615.º e no n.º 1, do art.º 662.º, ambos do C. P. Civil” (negrito nosso).
- Apreciação da intervenção de advogado nos autos ora em análise
Tal como decorre do âmbito das deliberações da Assembleia de Condóminos que foram apresentadas perante o Tribunal, e por este analisada, o Condomínio, mediante Assembleia de Condóminos, constitui uma Advogada, que deveria assistir aquele nos processos necessários, a título judicial, bem como, maioritariamente, a título extrajudicial.
Ora, sucede, no entanto, que na data daquelas deliberações, a Exma. Sra. Advogada era já mandatária constituída de alguns dos condóminos (daquele Condomínio), representando-os (a eles e não ao Condomínio) em processos judiciais em que eram parte contra outro grupo de condóminos (daquele Condomínio), sendo os seus honorários imputados ao Condomínio, por se considerar (tanto a Exma. Sra. Advogada quanto os condóminos que aprovaram as deliberações) que tinham conferido mandato à Exma. Sra. Advogada, que representava o interesse do Condomínio (ainda que, materialmente, representasse os condóminos). Ora, daqui resultaria que, aqueles condóminos que estariam na parte contrária, por não representarem o interesse do Condomínio, seriam chamados a suportar, para além dos honorários do seu advogado, os honorários da Exma. Sra. Advogada (pelo facto de os seus honorários serem suportados pelo Condomínio).
O art.º 97.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), dispõe no seu n.º 1, que “A relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca”, e no seu n.º 2 que “O advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas”. Tal significa que, seguindo as normas legais e deontológicas, a defesa dos interesses legítimos do cliente pelo Advogado deve ser a bússola no exercício do mandato que lhe foi conferido, sendo certo que subjacente a essa relação deve estar uma confiança recíproca. Daqui decorre, manifestamente, que “o mesmo advogado não poderá aceitar em simultâneo o mandato de dois litigantes, por não poder defender igualmente dois interesses antagónicos”.
Ainda que assim não se entendesse, sempre teríamos de respeitar o disposto no art. 99.º do EOA que vem tipificar um conjunto de situações em que, por se entender que o advogado não poderá defender os interesses legítimos do cliente, o mesmo deverá recusar o patrocínio. E assim afirma o tribunal: “No caso sub judice, a Exm.ª Advogada, sendo mandatária judicial de uns condóminos contra outros, não poderia aceitar o mandato por se tratar de questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente (n.º 1, do art.º 99.º), não poderia aceitar o mandato porque do seu exercício poderia resultar a propositura de ação contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado (n.º 2, do art.º 99.º), não poderia aceitar o mandato porque, estando também em causa o aconselhamento do Condomínio, nunca o poderia fazer em pleno por já ter litigado contra condóminos (n.º 3, do art.º 99.º)” (negrito nosso).
E, segundo o Tribunal de recurso, não se diga que a Assembleia de Condóminos não está sujeita ao previsto no EOA pois que “os preceitos citados do EOA não são normas exclusivas dos advogados, embora estes sejam os seus destinatários e primeiros obrigados ao seu acatamento, mas normas de interesse e ordem pública, que se dirigem a todos os cidadãos e todos beneficiam”.
Quanto a esta questão, conclui, assim, o Tribunal de Recurso, afirmando que “No que respeita à deliberação da Assembleia […], já com a assistência jurídica da Exm.ª Advogada, pelas razões expostas, a ordem pública e os bons costumes a que se reporta o n.º 2, do art.º 280.º, do C. Civil e os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, a que se reporta o art.º 334.º, do mesmo código, deveriam ter sido considerados e respeitados e não o tendo sido não poderão agora deixar de ser anuladas as deliberações, por ilegais, que mais não seja, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 1433.º, do C. Civil (5)” (negrito nosso).
Deste modo, retiramos do presente Acórdão, essencialmente, duas conclusões, bem enunciadas pelo Tribunal de Recurso. A primeira é a de que “É ilegal, por violação do n.º 1, do art.º 1424.º, do C. Civil, a deliberação da Assembleia de condóminos que aprova a comparticipação no pagamento de honorários de advogado de condóminos em ação judicial em que a parte contrária é constituída por outros condóminos, ainda que apelide os condóminos beneficiados como defensores de interesse comum” (negrito nosso), e, a segunda é a que “A deliberação da Assembleia de condóminos que aprova a outorga de mandato genérico a advogada que já era mandatária constituída por alguns condóminos no âmbito de processos judiciais propostos por condóminos contra outros condóminos, com o encargo, entre outros, de propor ações contra condóminos, é nula por violação das normas de interesse e ordem pública consagradas nos art.ºs 97.º e 99.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados e nos art.ºs 280.º, n.º 2 e 334.º,do C. Civil” (negrito nosso).
Dra. Delfina Rita Mendes
Dra. Marta S. Neto