No caso em apreço, estamos perante um trabalhador que sofreu uma fratura quando regressava do trabalho. Este tinha acabado de entrar numa área adjacente à sua habitação, deslocando-se à cave para realizar uma tarefa doméstica a pedido da esposa, sem ter retirado as botas de trabalho, quando o acidente sucedeu. O trabalhador considera que, se tratou de um acidente de trabalho, sendo que tanto a seguradora como a empresa empregadora não concordam. A primeira instância considerou que se tratava de um acidente de trabalho, tendo condenado as Rés. Inconformada a seguradora interpôs recurso, por considerar que não se encontravam preenchidos os requisitos do arts.º 8.º e 9.º da LAT (Lei 98/2009). Ora, o Tribunal da Relação de Guimarães veio dar razão à seguradora, absolvendo-a.
Para compreendermos esta decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, temos de primeiro esclarecer o que se considera por acidente de trabalho. Segundo o art.º 8.º, n.º 1 da LAT, é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte. Os acidentes in itinere encontram-se previstos no art.º 9.º da LAT. Estes são os acidentes de trajeto ou de percurso, isto é, todo aquele que se produz no trajeto normalmente utilizado pelo trabalhador entre a sua residência, habitual ou ocasional, e o seu local de trabalho e vice-versa, durante o período habitualmente gasto para o efeito. Isto significa que, para classificarmos um acidente como o de trabalho, não é necessário que o trabalhador esteja no seu local de trabalho nem que o mesmo ocorra durante o horário de trabalho e por isso, muitas vezes este tipo de acidente é também simultaneamente acidente de viação. Considera-se como este tipo de acidente, aquele que ocorra, no caso de o trabalhador ter mais de um emprego, entre qualquer dos locais de trabalho, entre a sua residência habitual ou ocasional e o seu local de trabalho, entre os locais referidos nas alíneas anteriores e o local de pagamento da retribuição, entre a sua residência ou o seu local de trabalho e o local onde deva ser prestada ao trabalhador qualquer forma de assistência ou tratamento devido a acidente anterior, entre o local de trabalho e o local de refeição, entre a sua residência ou local de trabalho habitual e o local onde, por determinação da entidade patronal, o trabalhador presta um serviço relacionado com o seu trabalho, bem como aquele que ocorrer quando o trabalhador tenha feito algum desvio ou interrupções no seu trajeto normal, desde que para a satisfação de necessidades atendíveis ou por motivo de força maior ou por acaso fortuito. Posto isto, importa fazer uma análise da legislação anterior, onde era considerado como acidente de trabalho, o que ocorria entre a residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho. No âmbito desta lei, entendia alguma jurisprudência menos exigente, mas na altura minoritária, que o percurso coberto se iniciava após a porta de saída da habitação, quer para os lugares comuns do edifício, quer para logradouro de habitação unifamiliar. Referia-se a existência de uma lacuna na lei, devendo considerar-se como acidente in itinere, por analogia, o ocorrido na área adjacente à habitação. Com a atual lei têm sido defendidas duas teses para casos como o em apreço. Uns, seguindo um entendimento que o tribunal considera excessivamente formal, apontam no sentido de que a tónica delimitadora do que é acidente in itinere ou não, passa necessariamente pela perda de controlo, ainda que meramente parcial, das condições e circunstâncias que afetam o espaço onde o trabalhador circula, quando se desloca de casa para o trabalho ou vice-versa, sujeitando-se assim aos perigos a que os locais públicos ou explorados pelo empregador ou clientes deste último estão expostos e que escapam, no todo ou em parte, ao seu domínio, vigilância e capacidade de modificação e reação. Entendem estes que, estes acidentes não têm tutela, por ocorrerem em espaço situado na esfera do risco próprio do trabalhador. O trabalhador sempre se exporia a estes riscos ainda que sem o trabalho. Claro que aqui tem de existir um limite, e esse deve procurar-se na lei. O legislador quis estender a tutela da segurança na deslocação do trabalhador desde o seu lar até ao local de trabalho que for determinado pela empregadora, estabelecendo que o risco corre por conta desta, em obediência ao princípio do ubi commoda ibi incommoda. A questão está em saber onde começa fisicamente esse risco. Se a partir da transposição da habitação em sentido estrito, local onde pernoita e toma as refeições, ou se só começa quando o trabalhador está na via pública. A nova lei deixou de referir desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, o que não pode deixar de relevar na interpretação a fazer quanto ao intuito do legislador. A lei refere residência habitual ou ocasional do sinistrado. Mas, será que o logradouro, escadas, partes comuns, podem ser consideras para este efeito? Há jurisprudência que considera que não, uma vez que vê estas áreas como acessórias do núcleo essencial constituído pela residência habitual. Ora, o caso sob análise escapa a esta extensão. O autor entrou na varanda onde se encontra a porta de acesso à sua habitação, passando além da porta de entrada da habitação, descendo ao segundo patamar para então descer as escadas que dão acesso à cave, sendo esta uma deslocação motivada exclusivamente no seu interesse, no âmbito das suas necessidades domésticas, quer seja estender a roupa, que como o próprio referiu seria estendida na parte de baixo junto à cave, quer para ir buscar batatas. Tal deslocação, não se enquadra na previsão do nº 3 do artigo 9º da LAT, segundo o qual não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito. Importa apreciar cada caso concreto a fim de determinar se o risco ainda corre pelo empregador, integrado na extinção do conceito de acidente in itinere, ou se tal já não ocorre, embora não tenha havido acesso à habitação propriamente dita. Para avaliar o que se enquadra no art.º 9.º, n.º 3 devemos ter em conta um critério de adequação social, não abrangendo as situações que implicam um “corte” na conexão com a relação laboral, como será o caso de um trabalhador que depois de chegar junto da porta de entrada da habitação, e antes de penetrar nesta, se desloca à cave para a satisfação de necessidades estritamente domésticas. Transpondo isto para o caso em concreto, tendo o trabalhador chegado à sua habitação, embora não tendo entrado no interior desta, já se encontra na sua esfera doméstica, encontramo-nos assim, no âmbito do risco doméstico. O trajeto termina junto à porta de acesso à habitação. Entrar na habitação ou não, antes de iniciar a sua “vida” doméstica, é indiferente. Deste modo, podemos concluir que, não estamos perante um acidente in itinere, tendo, por isso, o Tribunal da Relação de Guimarães absolvido a seguradora e a empresa empregadora.
Em suma, a extensão do conceito de acidente de trabalho aos acidentes in itinere, mesmo considerando os parâmetros atuais, após alteração ocorrida entre a previsão do 6º do DL 143/99 e a do artigo 9º da LAT, integrando, assim, ocorrências em espaços exteriores à habitação do sinistrado, ainda antes de se entrar na via pública, ou depois de ter abandonado esta, exige uma relação com o trabalho, devendo a concreta deslocação, em tempo e modo, ser decorrência das obrigações laborais, ressalvada a previsão do nº 3 do artigo 9º da LAT. Posto isto, o desvio de trajeto para a satisfação de necessidade atendível do trabalhador deve analisar-se de acordo com um critério de adequação social, não abrangendo as situações que implicam um “corte” na conexão com a relação laboral, como sucedeu na situação do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, onde será o caso de um trabalhador que depois de chegar junto da porta de entrada da habitação, e antes de penetrar nesta, se desloca à cave para a satisfação de necessidades estritamente domésticas.
Dra. Delfina Rita Mendes
Dra. Daniela Martins Rosas