“Nas ações de nascimento não desejado, o direito à indemnização depende da possibilidade da mãe poder exercer a interrupção voluntária da gravidez, de acordo com o regime legal vigente em Portugal à data”

 

Os casos de nascimento não desejado, também apelidados de wrongful birth, consistem, de forma genérica, em ações de responsabilidade civil médica que advêm de eventual deficiente diagnóstico médico durante a gravidez. Nestes casos, a conceção da criança é uma circunstância desejada; contudo, o nascimento é indesejado pelo facto de a criança ser portadora de deficiências ou malformações graves.

Por conseguinte, tendo nascido uma criança com graves deficiências ou malformações, os seus progenitores têm legitimidade para intentar a competente ação, em seu próprio nome, contra o médico responsável, por terem sido impedidos de tomar a decisão de interromper a gravidez. Isto porque, tais deficiências deveriam ser detetadas aquando dos diagnósticos e do acompanhamento que é fornecido à grávida, durante a gravidez, de forma a possibilitar aos progenitores tomarem uma decisão, informada e consciente das consequências, sobre a manutenção da gravidez. A causa de pedir pressupõe, assim, a existência de um erro de diagnóstico do médico que impede os progenitores de optar pela interrupção da gravidez e, consequentemente, evitar os danos derivados dessa omissão.

Neste seguimento, é relevante o afirmado pelo Tribunal da Relação do Porto, no seu acórdão de 1 de julho de 2021, processo n.º 5397/16.8T8PRT.P1. No caso concreto os Autores alegam um choque pela descoberta súbita do estado da sua filha, aquando do nascimento, atribuindo a responsabilidade ao médico, porquanto não teria detetado a Síndrome de Down da criança durante a gravidez. Acontece que o tribunal decidiu que “O critério valorativo da conduta do médico são as boas práticas clínicas ou legis artis, adoptadas num determinado sector profissional; juridicamente relevantes na medida em que são fundadas num consenso técnico e científico internacional de qualidade; de acordo com o avanço da ciência, e adequadas à “protecção da segurança e bem-estar” dos doentes. O conteúdo do dever do médico/clínica está limitado ao grau de conhecimento da data não podendo ser exigido a adoção em 1995 de técnicas de diagnóstico pré-natal que só vieram a ser paulatinamente adotados após 1997” (sublinhados nossos). Pelo tanto, a obrigação do médico não consiste na efetiva deteção de qualquer anomalia do feto, mas antes em empregar todos os meios possíveis existentes que permitam alcançar esse fim.

O Tribunal declarou ainda que “Nas acções de nascimento não desejado (wrongful birth) o direito de indemnização depende da possibilidade da mãe poder abortar. Essa faculdade depende e terá de ser conforme com o regime legal existente em Portugal na data” (sublinhados nossos). Assim sendo, no caso concreto, o Tribunal concluiu que tendo em conta as circunstâncias que se aplicavam à altura, em 1995, os Autores nunca teriam conhecimento da malformação antes das 16 semanas e, a interrupção voluntária da gravidez apenas não era punível quando realizada nas primeiras 12 semanas de gestação, pelo que não haveria a possibilidade da mãe abortar com conhecimento da situação de saúde do bebé.

Quer isto dizer que apenas haverá lugar a indemnização, nas ações de wrongful birth, se, sendo possível detetar a malformação ou deficiência grave aquando da gravidez, haveria a possibilidade real e legal de exercer a interrupção voluntária da gravidez. Ora, atualmente, atendendo ao regime legal existente em Portugal, a interrupção voluntária da gravidez apenas não é punível quando realizada nas primeiras 10 semanas de gestão.

Conclui-se, deste modo, que “o interesse protegido e indemnizável nas acções de nascimento não desejado (wrongfull birth) é a liberdade de decisão sobre o direito de procriação, que incluiu, a faculdade, nas condições legais, de interromper voluntariamente da gravidez”.