O Presidente da República, ao abrigo do art. 278.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, submeteu à apreciação do Tribunal Constitucional, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, as normas constantes do artigo 5.º, na parte em que altera o art. 17.º da Lei 109/2009 de 15 de setembro, do Decreto n.º 167/XIV, já que o considera potencialmente desconforme com a CRP, por violação do direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, na interpretação que lhe tem sido dada pelo Tribunal Constitucional, e do direito à utilização da informática, dando origem ao Acórdão do TC nº 687/2021.
O artigo em apreciação conferia ao art. 17.º, cuja nova epígrafe seria “Apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante”, da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro), o seguinte texto, nomeadamente no seu n.º 1 e n.º 2:
“1 – Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontradas, armazenadas nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante que sejam necessárias à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a sua apreensão.
2 – O órgão de polícia criminal pode efetuar as apreensões referidas no número anterior, sem prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente ordenada e executada nos termos do artigo 15.º, bem como quando haja urgência ou perigo na demora, devendo tal apreensão ser validada pela autoridade judiciária no prazo máximo de 72 horas.”
A Lei do Cibercrime tem em vista estabelecer as disposições penais materiais e processuais, bem como as disposições relativas à cooperação internacional em matéria penal, relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte eletrónico.
A norma ora posta em causa preceitua a possibilidade de apreender mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante por órgão de polícia criminal, no decurso de uma investigação criminal (pesquisa informática) validamente determinada por despacho da autoridade judiciária competente. A novidade está no facto de o órgão de polícia criminal poder efetuar tais apreensões sem prévia autorização da autoridade judiciária.
Adotando aquele conteúdo, o artigo in casu potencialmente afetaria os direitos à inviolabilidade da correspondência e das comunicações (art. 34.º, n.º 1 e 4 CRP), e à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização da informática (art. 35.º, n.º 1 e 4 CRP), enquanto decorrências específicas do direito à reserva de intimidade da vida privada (art. 26.º, n.º 1 CRP).
Apesar de estarmos ante direitos constitucionalmente consagrados, as normas que os preveem permitem a ingerência na intimidade da vida privada, através do acesso e do conhecimento de dados pessoais. Quer isto dizer que é admissível uma restrição aos direitos fundamentais de sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada bem como da proteção dos dados pessoais, no domínio da utilização da informática.
Contudo, a avaliação da conformidade constitucional do art. 17.º “exige um juízo que vá além da mera verificação da possibilidade abstrata de restrições aos direitos fundamentais em causa em sede de processo penal, exigindo a análise atenta do cumprimento das exigências constitucionais de excecionalidade, determinabilidade e proporcionalidade, bem como das demais regras e princípios constitucionais aplicáveis”, impostas pelo art. 18.º CRP. Assim sendo, a problemática prende-se com analisar atentamente se o regime jurídico tal como instituído por aquele art. 17.º, enquanto norma restritiva de direitos fundamentais, será admissível ou não.
O Tribunal Constitucional acabou por concluir que “não se duvida de que os interesses prosseguidos pela investigação criminal constituem razões legítimas para uma afetação restritiva dos direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e sigilo das comunicações (artigo 34.º, n.ºs 1 e 4, da CRP), e à proteção dos dados pessoais, no domínio da utilização da informática (artigo 35.º, n.ºs 1 e 4 da Lei Fundamental), enquanto manifestações particular e intensamente tuteladas da reserva de intimidade da vida privada (n.º 1 do artigo 26.º, n.º 1 da CRP). Contudo, a restrição de tais direitos especiais, que correspondem a refrações particularmente intensas e valiosas de um direito, mais geral, à privacidade, não pode deixar de respeitar não apenas as condições genericamente impostas pelo texto constitucional para qualquer lei restritiva de direitos fundamentais, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, como a exigência específica, em sede de processo criminal, de intervenção de um juiz, consagrada no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição. […] Ora, a solução sob escrutínio, não satisfaz, de modo algum, as exigências constitucionais de necessidade e proporcionalidade em sentido estrito das intervenções restritivas em matéria de direitos fundamentais, decorrente do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, nem a específica imposição de intervenção de um Juiz de Instrução Criminal nos atos de inquérito que diretamente contendam com direitos fundamentais, consagrada no artigo 32.º, n.º 4, da CRP”, pronunciando-se, assim, pela inconstitucionalidade das normas constantes do seu artigo 5.º, na parte em que altera o artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro.