Estando na ordem do dia o tema do enriquecimento ilícito, a verdade é que esta discussão há muito que tem vindo a ser alvo de discussão e discordância política e social
Foi em 2003 que, com o principal objetivo de implementar medidas para prevenção e combate do fenómeno corruptivo, foi celebrada a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, da qual faz parte Portugal. Entre outras medidas, a Convenção previu a possibilidade dos Estados-Parte qualificarem como infração penal o enriquecimento ilícito, isto é, o aumento significativo do património de um agente público, para o qual este último não consegue apresentar uma justificação razoável face ao seu rendimento legítimo.
Mas se assim ocorreu, porque motivo o enriquecimento ilícito ainda não foi criminalizado em Portugal? Será que, ao mesmo tempo que ajuda a combater a corrupção, comporta desvantagens?
Vejamos,
Em 2007, deu entrada na Assembleia da República aquela que se tornou a primeira proposta legislativa nesta matéria em Portugal. Propunha-se que «o funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, adquirir um património ou um modo de vida que sejam manifestamente desproporcionais ao seu rendimento e que não resultem de outro meio de aquisição lícito, com perigo de aquele património ou modo de vida provir de vantagens obtidas pela prática de crimes cometidos no exercício de funções públicas, é punível com pena de prisão até 5 anos».
Mais tarde, em 2009, um novo projeto veio aditar ao projeto inicial que a prova da desproporção entre património ou modo de vida (que não resulte de um meio de aquisição lícito) do «funcionário» e o seu rendimento legítimo incumbe, por inteiro, ao Ministério Público.
Não obstante, foi aqui – no ónus da prova – que se centraram os argumentos pelos quais se vieram a rejeitar estas, e outras, propostas legislativas em matéria de criminalização do enriquecimento ilícito, ao longo dos últimos anos. Isto porque, cabendo ao Ministério Público apresentar todas as provas suficientes para acusar o arguido de enriquecimento injustificado, vai recair, por outro lado, sobre este último o ónus de provar que existe uma causa lícita de aquisição que não seja conhecida: herança, lotaria, aplicações na bolsa, entre outros.
Mas, como bem sabemos, decorre do princípio do in dubio pro reo que o arguido não pode ser onerado com qualquer ónus probatório, já que qualquer insuficiência de prova para acusar deve necessariamente ser resolvida em seu favor.
Concluímos, assim, que a criminalização do enriquecimento ilícito, apesar de estar prevista na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e de ter sido já implementada noutros países, ainda não foi, até hoje, alvo de regulação em Portugal, por colocar em crise o princípio constitucional da presunção da inocência.